segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Aos meus amigos homens

Talvez você nunca acredite de verdade, mas eu te amo. Em certos momentos eu sinto vontade de por tua cabeça em meu colo e afagar seus cabelos enquanto você conta teus problemas ou tuas façanhas. Abraçar você forte e ficar sentindo o calor do teu corpo por mais tempo do que o habitual. Pode ser que eu chore nas primeiras vezes. Ou que você chore. Ou que sorriamos juntos por termos quebrado esta barreira. Imagina? É verdade. Já me imaginei tomando longos banhos contigo, dando risadas como dois indiozinhos que brincam nas águas de um rio. Passar shampoo e poder fechar os olhos sem me importar se você vai aproveitar para, escondido, observar meu pau, por sabermos que pintos são só pintos. Não são ameaças ao nossos sentimentos. Nem motivo de chacota um ter o pau maior ou mais grosso do que do outro. Eu só lamento que algo tão pequeno como um pênis faça tanta diferença no mundo em que vivemos. Esta é uma espécie de vergonha que não há roupa que a cubra. Portanto ficar sem até que não é tão difícil. É sim, eu sei. E se nossos corpos se encostarem qual é o problema? Você pensará que eu quero te pegar. Isto é tão pouco. Ok, eu confesso, eu já quis ou às vezes dá vontade. Porém neste quesito você é só mais um, porque sinto tesão por vários e por algumas. Relaxa. A questão é: porque somos dois homens somos treinados e acostumados a manter certas travas. Temos que ser duros. E não podemos ficar duros um na frente do outro porque "é" sinal de tesão(?).  Eu sinto mais tesão em você falando, me fazendo refletir, pensar, rir, me deslocando do conforto e tornando meus abismos mais palatáveis. E falando rasteiro: teu pau duro nem me interessa. A liberdade não é rija. 
Estamos condenados a protocolos que já não me fazem mais sentido. Por que meu corpo te ofende, repele? Por que o teu teria que me fazer sentir assim? Por que amigos não andam abraçados como bons amantes? Ou só casais de namorados têm esta permissão? Quem nunca viveu uma relação erótica muito menos íntima ou com menos potência do que uma amizade? Onde está escrito que mãos dadas validam emoções, vínculos e verdades afetivas?
Só peço que não tenha medo quando eu tirar minha roupa. Ou quando te abraçar apertado. É uma das minhas formas de me expressar. Pode vir numa ação bem-humorada, mas n
ão é brincadeira. E minhas orientações sexuais não são um convite permanente ao sexo. Ainda que eu faça provocações sobre. Eu gostaria que não houvesse medo só porque gosto de transar com homens e você não. Ou nem porque ambos gostamos de homens.
Somos bons amigos e nossos machismos são um atraso compartilhado.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Dor de dente

"Abancado a escrivaninha em São Paulo / Na minha casa da Rua Lopes Chaves / De repente senti um friúme por dentro.", disse Mario de Andrade. Eu aqui imerso em minha dor do nascimento do siso, pré-idade balzaquiana, me pego pensando em quanto a dor nos tira da condição de humanos e nos iguala à maioria das espécies.  " (...) A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, / A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair / Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, / E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos (...)" Como dói, Fernando Pessoa, mas não é na alma, é na carne. Nos músculos e nos nervos. O lado direito de minha cabeça pulsa. É uma dor que irradia da gengiva, passa pela ouvido, preenche-o, sobe pela cabeça e desce até a  nuca. Às vezes eu bocejo, não é de sono e nem de tédio, é vontade de imaginar o corpo se espreguiçando após um longo cochilo, e descansado, acorda renovado, pronto para outras. Mas não. A dor está lá encrustada mandando sinais de vida. Sim, dor é vida. Dor é sinal de que tem algo batendo forte dentro de ou lá. É o cérebro dizendo que não esqueceu. "Ei, vai dar um jeito?" Não há jeito para se dar, meu amigo massa cinzenta. Somos um paliativo com pernas. O pessimismo é companheiro da dor indesejada. Caminham lado a lado da cama vazia, da paixão frustada, do filho não quisto, da perda do emprego ideal, das contas que não param de chegar. A dor também é um aviso de que as coisas não vão muito bem. Os doentes estão em todos os lugares, não se engane. O hospital é a obviedade. Estão nos bares, nos altares dizendo sim, no trabalho, batendo no ombro no meio da rua. Dentro dos corpos mornos. Ela riu, ele riu, doentes. Ela chorou, ele chorou, doentes. Não expressou nada, doente. A dor nem sempre se manifesta no gesto. Nem sempre ela grita. Eu mesmo estou racionalizando algo que me corrói. Poderia bater a cabeça na parede ou enfiar uma furadeira pelo ouvido e sujar a sala. Mas não, eu gosto de viver. E isto contempla sentir dor. Dores erotizadas de deixar o capeta com vergonha são dóceis, administráveis, adestráveis. Dores não erotizadas são problemáticas porque nos fragilizam. Logo, eu penso que há felicidade em saber conviver com estes elementos da vida: a pulsação animal da carne e potência humana da racionalidade, que conforme Merleau-Ponty, são intrínsecas.
Neste ínterim, entre o dente que me ocupa e o texto que me incuba, me avisaram que Robin Williams morreu. Acabou a dor de Robin. Que pena. Ou não, nem sempre a gente quer aguentar. Muitos resistem. Persistem pelo medo de não saberem o que vem depois da falta de ar plena. "Ei, vou te deixar em paz", diz a massa cinzenta. Alguns ficam tentando pegar o último respiro como se fossem sobreviventes da seca olhando para um copo com água. Outros pulam de prédios para terminar com toda a confusão. Há dor no excesso e na falta, no prazer intenso e no desprazer encachaçado. 
Os dois comprimidos que tomei não fizeram efeito. Fico pensando se a dor está a leste ou a oeste do meu crânio. Não importa. Só quero acabar com isto, não de uma vez, não a morte. Quero acabar logo com este dente para sentir de novo meus pequenos prazeres e outras pequenas e inevitáveis dores.
PS: como não fui a algum dentista, pode ser tumor. AVC não é porque já coloquei os braços para cima e sorri.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Vestígios

​O ponto de ônibus. O número do ônibus. O caminho do ônibus. Aquela música. Aquela frase da música que cantávamos juntos. As flores que você me deu. As viagens que fizemos. Os aeroportos, as rodoviárias. A cor do teu banheiro. As toalhas que usei. Os banhos juntos. As risadas ensaboadas. Os risos secos. As mensagens de texto: sms, whatsapp, e-mail, bilhetes, recados e cartas. Os amigos em comum. Aqueles amigos que eu te apresentei. Os outros que você me apresentou. As fotos em que te vi antes de nos conhecermos. As vezes que você me perguntou se eu estava bem. Se eu estava melhor da gripe. E você me deu bronca porque eu não como direito. As noites de muitas conversas sem ver o tempo passar. Os gozos tão íntimos e pouco secretos. As discussões filosóficas. O aprender e o desaprender. As quebras de paradigmas. Acordar junto. Acordar pensando como seria bom se estivéssemos juntos. Acordar, olhar para o lado e ver tua cara inchada, a boca aberta e dizer a mim mesmo "Eu te amo". Os livros na estante. As páginas lidas em voz alta. As palavras dentro de mim. As promessas cumpridas e as que nunca serão. As taças de vinho tingindo a língua. As cervejas geladas. Os vômitos no banheiro. O barulho da descarga. O teu sorriso. A tua falta de sorrisos. O chão pisado. Descalço. Os presentes que me dera. Os presentes que eu nunca te dei. Os dias contados, calculados para te ver. E os que planejei para não te ver. Cada centímetro do teu corpo que percorri, vasculhei. A força que eu empreguei. A doçura com que você devolveu. A quantidade de porra e de saliva que saiu de mim. Os cheiros, os odores. O calor do corpo na cama. Os desenhos do lençol bagunçado. As chaves da tua casa. O número do teu apartamento. Os passos entre elevador e a tua porta. Entre tua porta e teu lábios. E teus braços. Tudo isto que dói quando decidimos que acabou. A vontade de amaldiçoar aquele álbum de fotos e de música que faz sentir saudade e aperta com a força de uma pisada o coração. O fim de um relacionamento mácula todos os teus vestígios. Os meus vestígios. Cada detalhe de nós, amarga nossos olhos depois do fim. Mas eu faço a escolha de não só sentir o gosto do fel. Eu quero comemorar todas as lembranças. Brindar o gostar e o amar. Quero sorrir para minha tristeza de não te ter mais e dizer "Está doendo porque foi bom." e que maravilha que foi prazeroso, enriquecedor, pulsante. Essas lágrimas vertem a ferida aberta da perda. Mas são águas que inauguram novos caminhos. Não faço uma ode à execução sumária da tristeza e nem ao imperativo da alegria. É que, sinceramente, não vou me furtar de estar feliz por tantas coisas belas. Mesmo que haja falta de sorrisos. Eu só quero comemorar a oportunidade de ter contigo. E olhar os pontos finais com generosidade. 
Aos amores que já tive e tenho, às relações e relacionamentos que finalizam, começam e recomeçam. Ao amor ímpar que eu senti, aos amores tão diversos que estão em mim. A oportunidade de me relacionar com você e você e você e você e você e você... Obrigado!

sábado, 14 de junho de 2014

Alegre

​Lá vai ela com lábios em forma de meia-lua. Tá sorrindo! Tá vendo? Ó lá, às vezes dança sem motivo. Rebola, requebra e agita os braços. Ó lá, tá vendo? E o brilho nos olhos? É pura luz. Pra quê? Pra quem? Não olhe nos olhos. Periga de te mandar um beijo. É, tô falando. Manda beijo sim. Assim ó. Indecente. Sem mais nem menos. Teve um dia que eu passei perto e me ofereceu um abraço. Aí eu contei para outras pessoas e me disseram quem ela abraça gostoso, aconchegante. Para quê? Ó lá, tô te falando! Já tá abraçando ali. Viu? A pessoa saiu sorrindo. Ela vive rindo, to-da-ho-ra! Eu passo por ela bem agudo, com seriedade, não dou brecha. Ó lá, outro abraço. Precisa disso? Tem dia que ela canta. Quais? Todo tipo de música que emociona. Aquelas boas de amor que pega fundo? Ixi, sabe todas e a danada tem voz boa. Tem dia que declama poesia. É! De cor e salteado! Se é dela? Claro que não, né?! 'Magina que ela é poeta, é tudo de livro. É... Ela é bem desocupada. Ou será que tem coisa da cabeça dela? Às vezes quando eu estou me aproximando e ouço aquela da pedra no caminho... Eu tenho vontade ir para cima, de xingar, porém não quero confusão, sabe? Mas dá vontade de mandar ela enfiar a pedra no meio daquele lugar. Oh se dá! Não dá? Ó lá... ó lá... Pegou uma flor e deu pra'quele cara ali. Ai que nervoso... Precisa? Muito jogada, dada, pra cima. Não dá. E ninguém faz nada, acredita? Já chamei até a polícia, quando eles chegaram, ela rodopiou feito bailarina, abriu um sorrisão e cantou uma cantiga. Eles riram e foram embora. Cê, acredita? Onde mora? Sei lá onde essa praga mora. Vai ver nem mora, viu? Fica por aí. Iiiiii, o rapaz da flor voltou com um chocolate e deu em sua mão. Já sabe onde dá isso, né? Tô te falando... ela é assim mesmo, desavergonhada. Um dia eu parei na frente dela, logo nos primeiros meses em que apareceu, e perguntei: menina, você veio de onde? Ela não respondeu. Eu repeti. Ela continuou muda e jogando pétalas de uma margarida para o céu e tentando mantê-las mais tempo no ar com o próprio sopro. Então eu a chamei de louca. Louca! Você é louca! Ela respondeu: eu sou alegre. Você é louca! "Eu sou alegre". Louca! "Alegre". Então num momento de fúria eu cheguei perto da pequena bruxa e firmei: Você é lou-ca! Por que acha que é alegre e não louca? Ela, quase encostando seu nariz no meu, disse bem rápido: porqueémelhorseralegrequesertristealegriaéa melhorcoisaqueexisteéassimcomoaluznocoração. E saiu correndo. Quando estava quase desaparecendo da minha visão, virou-se e me jogou um beijo.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Quem é a mulher?



​- Quero te contar uma coisa.


​​​F​ala.

​E​u preciso que você​ se​ sente.

​Conta logo!

​S​enta.

​Assim vai me atacar os nervos. Conta logo.

​E​u sou gay.

​C​omo assim?

​Gay, que não é h​é​tero.

​- Além de gay não é hétero? Que história é esta rapaz?

​- É!

- O que é hétero? Fala logo!​

​- Simplificando: eu gosto de homem.

​Então você quer ser mulher?

​Não, eu sou gay e não mulher trans, que tem uma mente que se identifica como mulher.

​M​as se gosta de homem​,​ você​ é mulher.

​Homem que gosta de homem é gay.

​Quem gosta de homem é mulher.

​M​as ​eu não sou mulher e meu namorado...

-
​ ​Ah, então ele é a mulher e você é o homem?

​S​ão dois homens!

​S​e vocês são homens, gostam de mulher.

​Gostamos um do outro e de outros homens.

​E​u só quero saber quem é a mulher.​ Vou ter de explicar para o restante da família depois.

​N​ão tem mulher!

​T​á complicado! Se não tem mulher​,​ como vocês fazem?

​O​ quê?

​Sexo, ué!

​É sexo entre homens.

​Você não está entendendo. Quem coloca em quem?

​O​ quê?

​O​ negócio.

​Que negócio?

​O​ pinto.

- Isso é pergunta que se faça?!

​Desembucha!

- Ahn... 
​Existe​ o​ ativo e o passivo. O primeiro ​penetra​ e o segundo ​é penetrado.​

​T​á. Um é homem e ​o ​outro é mulher.

​N​ão. Porque tem gente que faz os dois​, ​come e dá.

​É​ travesti.

​Você está confundindo tudo!

​M​enino, quem bota o pinto para dentro é homem e quem recebe no buraco é mulher.

​Você sabia que tem mulher que come homem?

​N​ão existe.

​Existe sim.

​N​ão existe!

​C​laro que existe!

​C​omo?

​C​om strap-on. Famosa "cinta-pau".

​​Que isso? Explica direito​.

​​​É​ tipo uma calcinha com um buraco para por um pinto de borracha ou silicone.

​Q​uê???

- Isto mesmo.

​- Repete devagar.

-​ É​ tipo uma calcinha com um buraco para por um ​pênis de borracha ou silicone.

- ​Pau de mentira?

​Sim. Compra em sex shop.

​O​ que é sex shop?

​U​ma loja...

​J​á estão vendendo pau duro​ em loja?

- ...

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Aracnofobia

Lembro de ter começado numa segunda-feira. Ele nos disse que o mundo estava infestado de aranhas. "Elas aparecem uma aqui, outra ali e de repente tomam conta de nossas casas", falava coisas desse tipo. No primeiro mês tivemos que conviver com duas dedetizações. Às vezes depois do almoço ele narrava seu novo nojo por aqueles bichos: a quantidade de patas, os olhos, a teia, o caráter traiçoeiro. Negava os estudos biológicos da espécie, dizia que todas eram venenosas, "Não existem artrópodes, é uma farsa, elas são cem por cento quelíceras".

Éramos dez no escritório. Certa tarde nos reuniu para avisar das mudanças que iria fazer nos setores e horários. As quatros mulheres que trabalhavam conosco, ficariam em uma mesma sala, entrariam mais cedo e 
almoçariam juntas, antes das onze da manhã. Quase não houve tempo para deliberações. Quando ia iniciar um bate-boca. Ele, esfregando as mãos, nos cortou: ou é isto ou peçam as contas. Uma das meninas gritou dizendo que aquelas alterações eram absurdas e não trabalharia, para ele, nem mais um minuto. No final do dia o viram passando veneno contra insetos nos cantos da parede.
Ele nunca entrava na sala "feminina" e tinha passado a evitar reuniões com as mulheres. Pedia que nós falássemos com elas. A tensão criada por suas estranhas atitudes, instalara um ar frágil no ambiente. Uma das três restante entre a maioria masculina, também pediu as contas, se sentia humilhada, chegava a ter crises de choro quando me dava carona voltando para casa. Ela ainda mora perto de mim.

No dia seguinte à saída da segunda mulher, encontramos a sala delas pintada de roxo. Foi seu mais abjeto golpe de terror dentro de sua caça. Elas gritaram, choraram e prometeram processá-lo se ele não parasse com aquelas esquisitices. Foi em vão. Ele parou de ir ao escritório. "Vou trabalhar de casa enquanto eu não estiver em segurança".
Ontem elas vieram arrumar suas coisas e se despedirem de nós. Contaram que ele pediu para o irmão ligar e fazer um acordo, ambas aceitaram porque além de receber todos seus direitos, ele depositaria dez mil reais a mais para cada uma.

Ao passar pela portaria, hoje, me disseram de forma jocosa fazendo uma aranha com as mãos "Ele tá aí". Cheguei aqui e parece que tudo voltou ao normal. Paredes brancas em todos os ambientes, não tem mais armadilha de aranha pelos cantos e nem o leve cheiro de veneno que já me acostumara. Ele sorri dentro de sua sala de vidro. Meus novos companheiros de trabalho são quatro rapazes solteiros com todo frescor da tenra idade de quem acaba de ingressar na faculdade.

Nunca houve uma aranha sequer nesse lugar. Raramente aparece uma barata. Tentamos falar que aquele aparato anti-aracnídeos era uma loucura. Fomos nos envergonhando de suas manias. Mas o boato é que ele adquiriu aracnofobia depois que sua esposa exigiu a separação e foi morar em outro apartamento no mesmo prédio que eles moram, junto com suas duas filhas.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

A diferença entre o veado e o macaco

Há quem defenda a ideia de que chamar um gay de veado é o mesmo que chamar um negro de macaco, ou qualquer outro ser humano. Isto, até o momento, eu tenho visto e ouvido de vozes de pessoas brancas. Porque, como colocarei os links no final desse texto, os blogs escritos por pessoas negras e a Sepir (Secretaria Especial da Promoção da Igualdade Racial) se colocam contra a tal campanha publicitária #somostodosmacacos, de Neymar e Luciano Huck.

O jornalista James Cimino do site ladobi, da UOL, escreveu que "os negros poderiam seguir o exemplo do movimento LGBT ao se apropriar do termo 'viado' e esvaziar o sentido pejorativo da palavra macaco". Ele coloca que a comunidade gay ressignificou palavras como bicha e veado/viado e se apropriou do termo, dando outra conotação. Mas eu discordo que as formas de discriminação da comunidade LGBT são equivalentes às que a comunidade negra sofre.
Quando alguém fala veado/viado, quer diminuir a masculinidade do outro, apontar uma prática sexual. Chama-se de veado/viado qualquer homem, mesmo que ele não tenha práticas homoeróticas ou seja homoafetivo. Viado é aquele que não é macho. Mas continua sendo humano.
No caso das pessoas negras, é diferente, por questões históricas. Cimino argumenta sobre a luz de Darwin. É bom lembrar que a eugenia, ciência que se propôs a qualificar as raças humanas, é do mesmo período e oriunda das teorias darwinistas. Através desse pensamento que o nazismo também se fundou. Conde Arthur de Gobineau escreveu "Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas" e criou o mito ariano. Chamar alguma mulher ou homem negro de "macaco(a)", é uma tentativa de rebaixar a negritude a uma condição não-humana, irracional, brusca e domesticável. Que está ligado também às cores de nossas peles.

Outro diferencial é que muitos integrantes da comunidade gay, de qual eu também faço parte, se chamam de bicha e viado. É uma convenção interna e não é ofensivo a todos. Nós, negros e negras, não nos tratamos como macacos e macacas. Portanto não queremos que ninguém se sinta autorizado a fazer isso conosco. É ofensivo. ACREDITEM: é ofensivo. Pode ser divertido e libertador para vocês, para nós não é! Desde a infância até a velhice temos que lidar com questões difíceis por termos pele escura e origem africana: da escola, a uma simples ida a um banco, no tratamento médico, no acesso à educação e afins.

É importante salientar que homofobia existe. Obviamente. Que as piadas e os xingamentos feito com a palavra "veado/viado" têm peso moralizante ainda. E muitos sofrem com isso. (Pergunte aos adolescentes se eles já ressignificaram. Saia de São Paulo e vá ao interiores do estado e de outros tantos também. É mais fácil ser gay nas regiões centrais de cidades grandes, como São Paulo)

Eu não vejo e nem concebo essa campanha diminuindo o racismo sentido por nós negros. Não há efetividade. Olhem para a agenda da luta para igualdade racial. Partam dessas demandas e não de qualquer uma sem base ou que reforce o racismo. 

Não somos todos macacos por que macacos são macacos e humanos são humanos.

É muito simpático que pessoas brancas ouçam como pessoas negras sentem e sofrem a discriminação, a opressão e o preconceito. Essa campanha gerada dentro de uma agência de publicidade tem como personagens um negro que não se entende como tal e um branco que quer vender camisetas. Não consultaram os movimentos sociais da luta contra o racismo. Não veem também importância a estes, inclusive porque a rede de televisão a qual esse cidadão serve criminaliza movimentos sociais.

Eu sou negro e gay*, viado e macaco batem diferente nos meus ouvidos e acredito que também para outros negros homo/bissexuais. Um homem negro gay tem muitas outras questões para lidar que um homem branco gay. Faz-se necessário entender isso para qualquer análise que se faça sobre raça e sexualidade.

*Sou homoflexível: prefiro homens e, situacionalmente, mulheres.




Abaixo links de outras opiniões de pessoas negras sobre o assunto:

https://medium.com/p/e026834c509e

http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2014/04/28/contra-o-racismo-nada-de-bananas-por-favor/

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2014/04/28/interna_cidadesdf,425046/somostodosmacacos-reforca-estereotipos-diz-secretario-da-igualdade-racial.shtml

http://blogueirasnegras.org/2014/04/29/a-babanizacao-do-racismo/

https://www.facebook.com/jenyffer.nascimento/posts/771572529541010?fref=nf

https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10203569888709510&set=a.2181557100160.224329.1283925839&type=1&theater


Outras vozes:

https://br.noticias.yahoo.com/blogs/alex-antunes/os-bananas-e-o-coxinha-135849449.html

http://www.brasilpost.com.br/helena-de-angelo-e-lizo/mais-uma-plaquinha-levanta_b_5228531.html





terça-feira, 25 de março de 2014

No meu silêncio

Para Lu e Gabi.

Deitado com a barriga para cima, eu encaixo meus dedos das mãos uns nos outros, formo um círculo no meio e as pouso um pouco abaixo do centro do peito. Já estou segurando o cabo e sentindo a pedra do meio do pomo raspar nos botões da camisa. O guarda-mão é de estanho e se assemelha a uma ponte estaiada cortada ao meio e posta em lados opostos. A lâmina é de aço com o vinco levemente ascendente e o gume não está tão afiado. Sou um cavaleiro sendo velado com uma roupa de honra e minha espada, a companheira de muitos confrontos, sobre uma gelada pedra de mármore. Morto, volto no tempo e me projeto em batalhas sangrentas. Vejo-me de longe sempre, por isso meus oponentes nunca têm seus rostos detalhados. De repente percebo que somos poucos e cansados. Tenho vontade de encontrar um sorriso conhecido por ali. Procuro. Cerro os olhos em busca de um contato que me dê ânimo para continuar. Penso em nomes de amigos que poderiam estar por perto. Dou dois ou três nomes e me convenço de que eles estão comigo. São representações de paz em meio ao sangue que suja tudo: minha barba, meu pescoço, a calça, as luvas e as botas. O sangue suja até a lama. Era num dia de chuva e derrota, a terra estava úmida. Somos um grupo vencido. Perdemos por incapacidade de enxergar. As imagens não têm som e nem cheiro próprio. É um filme mudo e colorido. De longe eu só ouvia as meninas cochichando e dando risadinhas curtas e carinhosas, tal como ninfas no jardim.
De certa forma isso me aliviava, mas por outro lado eu queria continuar lá. De volta ao local do velório solitário, a espada pesa sobre minhas pernas. Isto me dá conforto, como se eu não estivesse sozinho ali. Como se eu pudesse levar alguém conhecido comigo. Algo que me lembrasse quem era eu. A longa capa preta protegia meu corpo frio e desacordado. Por dentro eu sorria esse meu fim.

Abro os olhos ao ouvir o grunhido de madeira seca da porta ao lado da cama. A Luiza pediu desculpa por ter me acordado. Eu contei que não dormira. Ela respondeu dizendo que eu parecia estar morto. E eu estava.


segunda-feira, 24 de março de 2014

O jovem Magno

A campainha toca. A mulher, já de salto alto e vestido vermelho, se antecipa ao marido e abre a porta.

- Oi, Magno. Como você é pontual!

- Eu jamais a deixaria esperando.

- Me dá mais dez minutos que eu já desço para irmos.

- Claro! Espero o tempo que for preciso. - Sorri meio sem jeito ao perceber que o outro homem na sala está de pé, com braços cruzados e olhando fixo para ele.

- Julio, oferece alguma coisa para ele enquanto eu termino de me arrumar.

- Claro, meu amor. 

- Nem precisa, eu não quero nada.

- Ele quer sim. - responde o marido segurando o jovem pelo braço e levando-o até a cozinha.

- Mas eu nem posso beber, estou dirigindo.

- Bebe água.

- Não, obrigado.

- Vamos direto ao ponto: desde quando estão saindo?

- Bem, faz um tempo...

- Ela transa gostoso com você? É fogosa com você?

- Quem? - pergunta assustado.

- "Quem?" "Quem?". A minha esposa, rapaz!

- Se o senhor é o marido dela, quem deveria saber...

- Há quanto tempo você está comendo minha mulher? Onde se conheceram? - interroga chegando bem mais perto do outro.

- Mas... mas quem disse isto ao senhor?

- Você acha que eu sou idiota? Eu já tive amante. Sei como é. Conta tudo!

- Eu acho que...

- Sem enrolação, moleque!

- O senhor...

- Para de me chamar de senhor. Isto é uma tática baixa de acabar com minha autoestima, só porque você tem uns vinte poucos anos a menos do que eu. Usando essa calça agarrada marcando tudo. Todo cheiroso...

- ...

- Conta! Desembucha: onde a viu pela primeira vez? Como a conheceu?

- Através do Marquinhos.

- O Marquinhos te apresentou para a mãe dele? O meu filho te apresentou a mãe e agora você está saindo com ela! Você não sabe que é feio comer mãe de amigo? Você não tem escrúpulos, demoninho? 

- Mas Seu Julio...

- Ela está saindo com você porque deve achar que é pouco sexo uma vez por semana. Eu sou cardíaco, não posso ficar tomando esses remédios de "potência". Fumei demais, bebi demais e na tua idade eu usei outras coisas.

- Não tem nada a ver.

- Como não tem nada a ver? Como não tem nada a ver? Olha para minha barriga e olha a tua! Olha minha cara! Já não sou mais o mesmo, demoninho! - Põe uma mão no rosto e fala mais baixo do que já estava: - Só faltava ter pau grande...

- Seu Julio!

- Não diga o tamanho! Não venha me humilhar ainda mais dentro da minha casa!

- Eu vou para sala. Ela já vai descer.


- Fica aqui! Não terminei ainda. Vocês usam camisinha? Me dá um cigarro.

- O senhor não parou de fumar?

- Acabei de voltar. E não insista em me chamar de velho.

- Mas ela não gosta que fume dentro de casa.

- Como você sabe? Já veio aqui antes sem eu estar?

- Não. Marquinho que me contou.

- Você é um canalha! Fica pedindo informações dela pro meu filho.

- Não é isso...

- Chega de lero lero. Vamos combinar o seguinte: ou vocês transam aqui dentro quando eu estiver, fico na sala vendo televisão, e com o Marquinho fora de casa ou ela te encontra longe, em outro bairro. Não quero saber de vizinho falando que sou corno manso. Que homem vem pegar a Marina na porta e eu não faço nada.

- Nós só vamos jantar.

- Na semana que vem não precisa de jantarzinho. Ela só quer sexo com você. Ela me ama.

- Nunca duvidei disso, Seu Julio.

- Tá dito, rapaz! É Magno?

- Sim.

- É isso. Estamos conversados. Eu falo com a Marina quando ela voltar. E você que pague o jantar! Não estou podendo bancar gigolô. 

A mulher aparece na porta.

- Demorei?

- Nã...

- Como você está linda, meu amor! Concorda, Magno?

- Sim, está muito bonita.

- Obrigada, meninos. - ela solta um sorriso alegre.

- Eu vou assistir um filme na TV a cabo. Quando você voltar a gente conversa. Ele não precisa te trazer aqui. Pega um táxi.

- Júlio, o que é este cigarro na tua mão? Faz três anos que você não fuma!

- Voltei a fumar hoje.

- Magno! - ela exclama.

- Sim, foi ele mesmo que me ofereceu.

- Eu...

- Vão logo vocês dois para não ficar muito tarde.



O jovem abre a porta do carro e ela entra. O marido observa tudo pela janela.

- Ele desconfiou de alguma coisa, Magno?

- Não. Mas está confuso.

- Não sei se ele vai aceitar. - ela diz com a voz quase sumindo.

- Talvez ele possa ser muito mais flexível do que a senhora imagina.

- É justamente por isto que te chamei para jantar. Quero conversar contigo sobre como lidar com essa situação. Tenho medo que ele não aceite o Marquinho namorando um homem. Considero positivo que vocês já conversaram um pouco e agora ele te tem como meu amigo. E se você e o Marquinho se amam, por que nós, os pais, não deveríamos amar alguém que quer tanto bem ao nosso filho, né?

- Temos muito a conversar, Dona Marina.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Erosmania*

A vida não é exata. Mundo não é exato. Como o voo errático da borboleta com suas frágeis asas cor-de-laranja que eu vi ao abrir a janela hoje de manhã. Eu gostaria que ela viesse posar em um dos meus ombros e dissesse "Está tudo bem, Adriano. Somos assim por causa do vento." Mas borboletas não falam. Os seres vivos que só dançam são muito mais difíceis de interpretar. Aliás, ela pouco se importa. Apenas é. Quem sabe?
E ontem eu decidi começar meu trabalho de conclusão de curso que tem como via principal o Erotismo. Reflexão sobre o tema que eu me dedico há muito tempo. Caminho que eu trilho ao respirar. Sou erosmaníaco. Eros é o deus que escapa das mãos de qualquer mortal e confunde até os deuses, segundo Hesíodo em sua Teogonia. Lidar com o erotismo é entrar num caminho pouco iluminado, porque apesar dos controles sociais e, consequentemente, de seus condicionamentos, há sempre pontos fora da curva, linhas incompletas, abismos e jardins que nos tomam de assalto.
Entre as dúzias de dualidades que me habitam, esta é certamente basilar: a insistente e querida racionalização e a erosmania. De um lado, tento e costumo apreender das coisas da vida e do mundo significados que deem segurança para eu andar sobre as horas; no outro, sou dado às experiências sensíveis do corpo, a um número variado de bocas, de sensações, de pensamentos vadios, do jogo infinito de possibilidades, tanto do meu erotismo quanto dos outros. (Para alguns pode ser surpresa: libertinos são bem racionais, não que seja totalmente meu caso.) Não há problema na convivência aparente da dualidade, porque tenho prazer em racionalizar, portanto, Eros também está intensamente embrenhado nas pretensões intelectuais. Porém, e admito com pouca facilidade em fazê-lo, é felizmente quando focos de breu se instalam na razão, que tateia, perdida, as paredes da pele, como quem diz "Onde vamos parar? Onde está a saída?", que me parece que o mundo chacoalha. É o desejo tomando a vida pela jugular, lambendo os pés, forçando as pregas do cu, cheirando a púbis, subindo pelas costas, falando provocações atrás da nuca. Eros faz um convite à vida e à morte. Desde um simples brigadeiro às orgias e saltos de paraquedas.
Erosmaníacos sofrem de quererem ser dez, mil, cem mil ao mesmo tempo para viver todas as paixões, amores e todas sensações que o corpo e o mundo podem proporcionar. São ávidos em sorver os sulcos da vida. Por isso também, ao contrário dos virtuosos, são egoístas porque são viciados.


A minha busca está contaminada por um forte apego à racionalidade e ao erotismo. A norma versus a transgressão. Um círculo de fogo inexato. É fácil? Não. Mas eu adoro me foder e gozar para cima.


*Escrito em 19/03/2014

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Os 20 primeiros e os 20 próximos

Entre os discos de divas da MPB e uma tempestade, meus vinte primeiros suicídios suicidaram mais que vinte personagens. Um exercício de escrita que nasceu da mistura do meu interesse pela abreviação voluntária da vida e um show da Maria Bethânia. Por isso a adolescente do primeiro breve conto, se mata por um amor vivido nas canções. Porque o amor é coisa séria. Mais séria do que deveria. Um sentimento que poucos conseguem viver sem perder as asas. Sem transformá-lo num pacto de prisioneiros disfarçado de oceano. E é nesse sufocamento, dos limites do corpo, do mundo e da vida, que minhas personagens caminham até a escuridão definitiva, ou não. De trás de motivos aparentes, e em outros nem tanto, o suicídio é o caminho irrevogável desses atores que dão um pedaço de vida e enchem de cheiro de morte esse projeto que junta duas linguagens. No processo de criação, o texto vem primeiro. A imagem fotográfica em seguida como ilustração inexata, mas não equivocada ou desassociada; feitas nesses vinte primeiros breve contos, pelo Edson Feitosa.
O narrador do primeiro quinto dos 100, esteve sempre na terceira pessoa, dando voz a alguns pensamentos e algumas falas diretas, que às vezes se misturam com a própria voz narrativa, mas nunca foi ela de fato. Por vezes, nem ele mesmo sabia a causa das mortes. E talvez nunca saberá. 










Os próximos vinte suicídios serão escritos na primeira pessoa. Falarão para si. Não têm a intenção de emitir recados para o mundo ou de serem coerentes consigo e o externo. Do XXI ao XL não há preocupação ou necessidade de apresentar um corpo. Meu interesse é a caixa pensante dentro do labirinto. Dentro da perdição da vida e o passo para a morte.

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Ao revisor desses, eu digo que você foi Muito amável revisando, conversando e lendo. Obrigado!