terça-feira, 12 de agosto de 2014

Dor de dente

"Abancado a escrivaninha em São Paulo / Na minha casa da Rua Lopes Chaves / De repente senti um friúme por dentro.", disse Mario de Andrade. Eu aqui imerso em minha dor do nascimento do siso, pré-idade balzaquiana, me pego pensando em quanto a dor nos tira da condição de humanos e nos iguala à maioria das espécies.  " (...) A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger, / A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair / Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas, / E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos (...)" Como dói, Fernando Pessoa, mas não é na alma, é na carne. Nos músculos e nos nervos. O lado direito de minha cabeça pulsa. É uma dor que irradia da gengiva, passa pela ouvido, preenche-o, sobe pela cabeça e desce até a  nuca. Às vezes eu bocejo, não é de sono e nem de tédio, é vontade de imaginar o corpo se espreguiçando após um longo cochilo, e descansado, acorda renovado, pronto para outras. Mas não. A dor está lá encrustada mandando sinais de vida. Sim, dor é vida. Dor é sinal de que tem algo batendo forte dentro de ou lá. É o cérebro dizendo que não esqueceu. "Ei, vai dar um jeito?" Não há jeito para se dar, meu amigo massa cinzenta. Somos um paliativo com pernas. O pessimismo é companheiro da dor indesejada. Caminham lado a lado da cama vazia, da paixão frustada, do filho não quisto, da perda do emprego ideal, das contas que não param de chegar. A dor também é um aviso de que as coisas não vão muito bem. Os doentes estão em todos os lugares, não se engane. O hospital é a obviedade. Estão nos bares, nos altares dizendo sim, no trabalho, batendo no ombro no meio da rua. Dentro dos corpos mornos. Ela riu, ele riu, doentes. Ela chorou, ele chorou, doentes. Não expressou nada, doente. A dor nem sempre se manifesta no gesto. Nem sempre ela grita. Eu mesmo estou racionalizando algo que me corrói. Poderia bater a cabeça na parede ou enfiar uma furadeira pelo ouvido e sujar a sala. Mas não, eu gosto de viver. E isto contempla sentir dor. Dores erotizadas de deixar o capeta com vergonha são dóceis, administráveis, adestráveis. Dores não erotizadas são problemáticas porque nos fragilizam. Logo, eu penso que há felicidade em saber conviver com estes elementos da vida: a pulsação animal da carne e potência humana da racionalidade, que conforme Merleau-Ponty, são intrínsecas.
Neste ínterim, entre o dente que me ocupa e o texto que me incuba, me avisaram que Robin Williams morreu. Acabou a dor de Robin. Que pena. Ou não, nem sempre a gente quer aguentar. Muitos resistem. Persistem pelo medo de não saberem o que vem depois da falta de ar plena. "Ei, vou te deixar em paz", diz a massa cinzenta. Alguns ficam tentando pegar o último respiro como se fossem sobreviventes da seca olhando para um copo com água. Outros pulam de prédios para terminar com toda a confusão. Há dor no excesso e na falta, no prazer intenso e no desprazer encachaçado. 
Os dois comprimidos que tomei não fizeram efeito. Fico pensando se a dor está a leste ou a oeste do meu crânio. Não importa. Só quero acabar com isto, não de uma vez, não a morte. Quero acabar logo com este dente para sentir de novo meus pequenos prazeres e outras pequenas e inevitáveis dores.
PS: como não fui a algum dentista, pode ser tumor. AVC não é porque já coloquei os braços para cima e sorri.

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