terça-feira, 24 de setembro de 2013

Happy Hour

Dentro do carro, ele boceja e vê a fila interminável de automóveis. Motos passam ininterruptamente ao seu lado. As buzinas garantem que ele não cochile. É segunda-feira e ele foi dormir tarde. Os dois filhos teimaram em ir para o quarto e depois foram resistentes para desligar o computador. Em seu quarto quando transou com a esposa, já passava das duas horas. No próximo final de semana vai ser no sábado - ela quer me matar - pensou. Ligou o rádio para saber o que iria conversar na hora do almoço.

Chega no prédio da empresa e olha se está bem ajeitado. Camisa bem passada e cabelo penteado, o crachá estampa no peito o logo do empregador, seu nome e cargo. Terça-feira e já era a segunda reunião da semana. Passa pela nova recepcionista, mira os peitos da moça sem disfarçar. Perto da máquina de café, encontra com outro funcionário, um colega do mesmo setor e comenta "essa aí tem cara de que dá até o cu" e riem. Faz uma aposta de quanto tempo ela iria durar e quantos iriam comê-la. 

Quarta-feira, dia de feijoada, é com os amigos, né? E são cinco. Apesar de ele ser bem popular com o pessoal do serviço. Mas ele só confia nos antigos, os novos estão com essas ideias de gente mole. Ele no alto dos seus trinta e oitos anos não vai ficar se podando para falar na hora sagrada do almoço. Porque ele goza ao dizer que o chefe dá o rabo para travesti. Aliás, tirando os amigos, na verdade verdadeira, o resto é tudo viado, frígida, mal-amada, vagabunda, corno ou broxa. Apesar de desconfiar que um dos seus já forneceu a rosca também.

Barriga cheia dá aquele sono. Começa a contagem das horas para ir embora. Quinta-feira e o filho da puta do corno do caralho do RH quer fazer reunião com os setores? Tá maluco! Mais tarde tem supermercado com esposa (Periga de perder o Jornal Nacional). Lá se vão litros de café para não dormir. O pior é o desarranjo intestinal. Mas ele caga e não dá descarga há mais de uma semana, para zoar a faxineira que não quis pegar o telefone de uma vadia que trabalha para uma outra empresa no andar de baixo. 


São sete horas da noite. Hora de ir embora. Sexta-feira é dia de bar com os comparsa. Vai chegar mais tarde em casa. Dia de alisar a barriga com o copo gelado na mão. Vai com os amigos para o mesmo lugar. Já conhece o garçom. O "Zé", chama assim, mesmo que o nome dele não seja esse, ele acha mais fácil. Lá ele ri de tudo. Fala mal de todos. Pode, enfim, gritar. Lá conta sobre suas transas incríveis e das minas que querem dar para ele. Tira sarro dos amigos e se defende das ofensivas contra seu time de coração. Lá ele se reconhece nas outras mesas. Ele ama o Happy Hour: são oitos horas de trabalho diário, mais uma hora meia no trânsito para ir e duas horas para voltar. Totalizando quase, duras e enfadonhas, cinquenta e oito horas na semana dedicadas ao trabalho. Ele vive a alegria dessas grandiosas três horas antes do sábado com a família. É o Happy Hour dos crachás. Que, é bem sabido, ele só tira quando chega em casa.

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Inspirado em um diálogo que tive com a Patrícia Pimenta.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Na última terça-feira eu não trabalhei. Fui dormir tarde e acordei com a cabeça doendo. O que eu tinha esquecido é que ficar a tarde toda em casa significava passar a tarde toda ouvindo meus vizinhos adolescentes e seus amigos. Isto quer dizer ouvir as músicas que eles gostam e participar como ouvinte de suas conversas, porque eles falam alto e algumas vezes gritam. São meninos que logo se tornarão homens. Durante as horas que no meu silêncio os escutava trocarem ofensas amigáveis entre eles, eu fui e voltei em lembranças da minha adolescência, principalmente de uma, em específico.
Quando eu estava com 15 ou 16 anos, meu melhor amigo tinha dois irmãos, um mais velho e outro bem novinho, o segundo beirava 3 ou 4 anos de idade. Os amigos do mais velho gostavam de me lembrar da minha homossexualidade, mesmo que naquela época eu não soubesse exatamente o que isso compreendia ou contemplava. Não era incomum que eles gritassem "Oh, viado" do outro lado da rua ou apontassem para as supostas bichas da escola, me incluindo nessa lista. Por mais sofrido que aqueles momentos fossem, eu sinceramente já estava habituado. Doía, doía muito. Mas mais doloroso foi quando certa vez eu passei na frente da casa desse grande amigo meu e seu irmãozinho, sozinho no quintal segurando as barras de ferro do portão, gritou "Viado!". Eu fiquei surpreso. Consternado, mas paralisado. Aquela criança que mal sabia falar direito já usava uma palavra ofensiva contra mim. Não demorou muito tempo para eu descobrir que os amigos de seu irmão mais velho que o tinham treinado para me chamar de bicha e viado quando eu passasse. E eles não escondiam isso, pelo contrário achavam bem engraçado. Um dia, novamente sozinho em seu quintal, o menino me xingou. Eu me aproximei, agachei perto do portão e perguntei se ele sabia o que era "bicha" e "viado". Não respondeu, ficou alguns segundos mudo e correu para dentro de sua casa. Ele não sabia o que significava, mas já atribuía sentidos aos termos. Era algo ruim e que o grupo de amigos do seu irmão mais velho não gostava. 
O treinamento machista começa cedo e dentro dele está a condição de ser homofóbico.

Enquanto conversava com amigos e vias coisas no Facebook, os garotos lá fora constantemente diziam uns aos outros "seu viado", "arrombado", "teu cu", "cê é bicha". Não porque eles desconfiem de fato de suas mascunilidades, mas é assim que comumente se tratam. É assim que a sociedade comunica várias vezes ao dia o que é ser macho, o que é desejável e aceito, como deve-se se comportar. Cresceram ouvindo e aprenderam a reproduzir, tanto para caçoar do amigo quanto para humilhar quem estiver fora do moldes machistas. Nessa fase da vida, os pelos começam a aparecer e tomar volume, a voz muda, o cheiro fica mais marcante, não se sabe muito bem se o pau vai crescer mais ou não (sempre torcemos para que continue a crescer até os 30 anos), se será o último a beijar uma menina ou o primeiro a transar. Essa é a fase em que os homens mais precisam reafirmar sua masculinidade e a linguagem é uma importante ferramenta nesse processo. Aponta-se contra o outro o que não se quer ou que não desejam que vejam em si. Isso não tem a ver necessariamente com teu amigo, vizinho, primo ou professor ser gay ou não. Todo homem sofre homofobia; o homem homossexual sofre mais, é agredido física e psicologicamente, e é assassinado por personificar o indesejável. Mas a homofobia é diária para os homens independente de sua orientação sexual. Desde a piadinha sacana àquela desconfiança do "será que ele é?" no trabalho ou na roda de amigos. 
Desconstruir esse condicionamento opressor demora, principalmente, porque somos ensinados a sermos super-homens. A masculinidade é muito frágil.  Talvez por isso precise tanto ser gritada, reafirmada e reconfirmada com tão alta frequência. A masculinidade machista torna o homem opressor e oprimido ao mesmo tempo. 

Foram naqueles anos em que eu também estava em processo de mudança com os pelos invadindo as áreas mais quentes do meu corpo, que meu amigo, irmão do meio daqueles outros dois, aguentou toda a barra de ser questionado, zoado e provocado por ter a coragem de caminhar do lado de um "viadinho". De frequentar a minha casa e, com pouco tempo depois, aprender a não ter vergonha de dizer que tinha um amigo gay. 
Faz uns anos que os irmãos de meu amigo-irmão me tratam cordialmente, são até gentis comigo. Os moleques do bairro que hoje são adultos como eu, também. Não tenho mais problemas dessa natureza com eles. Acho até que alguns pensam diferente e veem a homo/bissexualidade e as heterossexualidades destonantes da norma com menos preconceito e mais respeito. 
Ao ouvir os meninos lá fora na minha tarde de descanso, eu pensei em como foi incrível e importante ter meu amigo-irmão do meu lado quando éramos adolescentes, do quanto seu apoio foi essencial para eu vislumbrar um mundo diferente e mais libertário, e de como a fragilidade de ser homem machista é cansativa. 

Eu gostaria que se um dia eles lessem esse texto que não se ofendessem. Peço reflexão, senão, respeito.

A homofobia faz do machista algoz e vítima num mesmo corpo. Caçador e presa das subjetividades daqueles que podem ser muito mais do que ter um pinto entre as pernas.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Naquela noite que orvalhava nossos corpos nus, o mel entre suas pernas escorreu em minha língua e espalhou um cheiro doce nos pelos do meu rosto. E apesar de serem os homens que geralmente me dão água na boca, foi com o gosto dela que eu fui dormir sem escovar os dentes.
Indo para o trabalho encontro na rua uma amiga do tempo do colégio.
- Oi, querido. Tudo bem? Quanto tempo!
- Tudo bem e você?
- Eu tô bem. Tá trabalhando? Tá namorando?
- Sim, estou namorando e trabalhando.
- Que ótimo. - Ela sorri.
- Mentira. Eu não namoro e estou desempregado.
Dou uma risadinha. Ela reage antagonicamente, põe a mão esquerda levemente sobre meu peito e diz:
- Mas fica tranquilo que tudo vai melhorar.

Nos despedimos e eu fiquei pensando que em 15 segundos de conversas e depois de anos sem nos vermos, ela só queria saber se eu tenho um emprego e um namorado. Geralmente ter um trabalho mediano e alguém para chamar de seu, deixa uma impressão de que a vida caminha bem. Ou esse seja o caminho natural a seguir. Nascidos para trabalhar, namorar, casar e reproduzir, ainda muitos pensam assim. Como se ter uma ocupação de segunda a sexta, das 8h às 17h, e um namoradx fosse garantia de felicidade. Conheço dúzias de pessoas que são infelizes com as horas que dedicam aos seus trabalhos. Gente que namora e vive um rio de dúvidas, transtornos, falta de tesão constante. Mas para o mundo pelo menos não estão sozinhas e estão trabalhando. São ilusões de felicidade, como esta, que se arrastam todas as sextas-feiras para os bares depois de uma semana cansativa, para as camas dos profissionais do sexo que muitxs alugam seus ouvidos e falam toda sorte de maldições sobre trabalho e vida conjugal. O trabalho em vez de ser uma utilidade pública e/ou envolver expectativas e desejos individuais sem destruir seu próprio mundo interior, é apenas uma forma de galgar o degrau da classe social acima, então um "Tá trabalhando?" quer dizer "Tem dinheiro?". Ter alguém para chamar de namoradx, marido ou esposa dá a impressão do mínimo de sucesso afetivo. Estar empregado e ter um namoradx envolve um caldeirão de variáveis. Da frustração à alegria. Porém segue-se aparentemente bem por vestir uma roupa-(anti)social e exibir o crachá no peito na hora do almoço e gastar o dinheiro com o suor amargo passeando com namoradx no final de semana.
O combo máximo é quando na "firma" o indivíduo fala mal dx namoradx e no sábado e o domingo passa horas do dia reclamando do trabalho.

Não é só com 44 semanais e uma aliança no dedo que se tem uma vida, que depois olhando para trás, poderá se dizer que valeu, que foi boa ou minimamente satisfatória. Não mesmo.